Toma um fósforo acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro. A mão que te afaga, é a mesma que te apedreja. Se alguém causa ainda pena a tua chaga apedreja essa mão vil que te afaga, escarra na boca que te beija! RE-Incidente em Antares: junho 2006

terça-feira, junho 20, 2006

Substituições em um joguinho esquisito

Qualquer tipo de obrigatoriedade me causa sarna.Desde os tempos idos da mais tenra infância que eu tenho uma birra hecatômbica de qualquer tipo de imposição.Cheguei mesmo a ser reprovado na escola por me recusar a estudar aquilo que não me interessava ou que achava que não dizia respeito aos meus gostos e habilidades pessoais.Rebeldiazinha púbere? Qual nada era preguiça mesmo.Tanta preguiça que eu me recusava até a colar pelo trabalhão que dava.No mais, infante que era, eu já tinha razão: não me transformei em químico nem em físico.
Mas este narigão de cera aí em cima é para falar do meu atual desespero com a overdose impositiva futebolística dos tupiniquins em época de copa do mundo.O que era sarna na infância agora toma os ares de uma urticária pesada com brotuejas e tudo o mais. Quem diabos pode me explicar um país que pára durante um mês para entregar sua alma e o apêndice a menos de uma dúzia de marmanjos que tentam enfiar uma pelota em uma rede?(E que me façam os sociólogos o favor de não responderem a esta minha pergunta porque ela foi apenas um exercício de retórica para adornar minha antipatia. Por Deus.)
Como no caso de química e física na minha infância, não odeio o futebol em si.Tenho preguiça dele.A minha birra é com os passionais de plantão. Jornalistas, filósofos, motoristas de táxi, lavadeiras, garçons, todo mundo da nação nambiquara enfim se junta e de repente faz soar um único coro comum de adoradores e comentadores do esporte bretão. É o ápice da democracia em seu pior aspecto: a ditadura do gosto médio da maioria.Até mesmo artistas e intelectuais sucubem à moda.
O futebol de súbito vira uma quitanda de sublimação coletiva para delírio de Freud na tumba.Um certo amigo meu, que é ateu, desconta sua falta de adoração religiosa no culto às chuteiras dos marmanjos.Não por acaso, eu o considero a metáfora maior que talvez simbolize as idiossincrasias que formam um todo de uma paixão coletiva.Afora a religião, que já é um substitutivo (talvez até necessário) de muita coisa no corolário das neuroses humanas, o futebol substitui um sem número de carências humanas e sociais: financeira, afetiva, sexual e patati patatá.Este meu amigo, sujeito culto e inteligente, conseguiu a proeza de substituir uma substituição por outra substituição.Sublima ao quadrado e ad infinitum suas carências metafísicas por uma outra sublimação tamanho família popular. É Freud e Schopenhauer fazendo a festa em uma pelada no além...
Mas o que me espanta é que o futebol mesmo é um jogo muito parecido com a vida em si para se tornar um substitutivo feérico da realidade: é um jogo aborrecido, na maioria das vezes de poucos ápices (gols), em que não necessariamente sempre o melhor ganha (na vida real, a coisa é inversamente proporcional) por razões do esquema de regras esquisitas do próprio jogo em si.Seria o futebol um apelo masoquista sublimador, como a arte? Sei lá eu.Eu é que não troco uma sinfonia de Beethoven ou uma peça de Shakespeare por uma partida de Brasil e Croácia com placar de um a zero.Neurose sublimatória por neurose sublimatória, prefiro as minhas, mais pedantes e sofisticadas e não impostas pelo senso comum.No meu time de sublimações, o futebol não entra nem como reserva.

segunda-feira, junho 12, 2006

Horizonte

A cidade se abre como encruzilhada complacente
convidativa em suas esquinas tergiversantes
em sua essência de boca porosa
engolindo seus transeuntes desavisados

Como um tumor não descoberto, produz sorrateiramente
a metástase dos seus espelhos coletivos
em reflexo deformado de seus narcisos singulares
sequiosos por uma falsa imagem do que
deixam de ver à sua frente

A cidade reflete a si mesma na projeção dos seus habitantes:
seus odores de rotina suas máscaras de concreto
seu plano mal calculado e ultrapassado pelo
progresso das circunstâncias
seu asfalto áspero dando solo
a sonhos desejos e convicções amaciados
pelo conforto estático dos transportes públicos
o trânsito caótico de suas vítimas ávidas pela colisão

A cidade sobrevive como geografia humana em perspectiva
ornada de monumentos estéreis de heróis desnecessários
sustentada pelo frágil vértice dos edifícios que miram um céu intangível

A cidade se fecha com resposta tácita a uma pergunta estilhaçada
Seus ruídos guturais sua falta de estilo seus cruzamentos enviesados
sua velocidade sem rumo seu grito primitivo e inescrutável
são o sentido lógico e equação exata de sua urbanidade inviolável

A cidade pesa sobre seus habitantes
como tentativa atávica e utópica
da construção de um lugar comum
para multidões de um só.

segunda-feira, junho 05, 2006

Superfícies e profundezas

O Brasil é o paraíso da superfície. Não à toa grassam entre nossos supostos talentos literários um sem número de cronistas que agora têm um novo recrudescimento com o surgimento dos blogs. Figurinhas blasé, dândis que pregam uma atitude indiferente, ao mesmo tempo irônicos e iconoclastas.
A problema é o balanço entre ironia e iconoclastia. Uma certa porção de culhões é necessária para se tentar destruir algo e se tornar de fato um iconoclasta ou coisa do tipo. Por falta de substância-e de culhões-nossos neocronistas virtuais carregam nas doses da ironia, aceitando tacitamente um estado de coisas como elas são: ruins mesmo, enquanto esta casta privilegiada de escribas potencialmente usufruiriam de uma visão beatífica da estética universal. Bah.
Ah, não se enganem: o contrário também existe e é tão ou mais tedioso quanto o fenômeno dos dândis internéticos. Há também os frutos da sempre popular e populosa intelligentsia nacional: os filhos da esquerda festiva. Revolucionários de botequim que vestem camisetas de che guevara e querem conceber e realizar a revolução socialista nos dias de hoje.As palavras de ordem são sempre as mesmas: luta contra as desigualdades, contra a fome, contra a injustiça social e patati patatá.
Pois bem: o que une estes grupos aparentemente tão diversos ? A superficialidade mesma. São todos oriundos (embora os blasé se finjam por vezes críticos deste viés) da crônica brasileira: esta mania tupiniquim de tentar embutir teses sociais, metafísicas e filosofias em uma conversa de mesa de bar.
Você, desconfiado leitor, deve agora estar se perguntando que diabos este escribinha que vos fala está a meter o tacape na própria raça. Não seria ele um destes frutos do croniquismo brasileiro também? Talvez sim, em parte.Mas quem é que disse que esta mania de superficialidade é necessariamente ruim? Pode ser chata e o é na maioria das vezes, porque a maiorias dos cronistas crônicos, sejam eles de internet ou não, não tem talento, ou são visceralmente enfadonhos mesmo.
O fato é que nada tenho de substancial contra a superficialidade em si, desde que a dita cuja seja bem arquitetada e resvale num certo aprofundamento, só para que o leitor não se afogue no tédio de uma poça rasa de julgamentinhos sem estrutura.E, de resto, a maioria das profundezas da literatura e mesmo das relações humanas são em essência superficiais. Talvez profundo mesmo seja o sujeito que saiba tirar da superfície um extrato do que seria a essência(ou a falta de essência) da humanidade.Uma leitura mais atenta e acurada de um Proust ou mesmo de um Shakespeare revela exatamente isto.
Ser superficial na forma e profundo na superfície é uma equação não muito afeita à maioria das pessoas que escrevem ou tentam escrever. Por isto mesmo há escritores e pessoas que escrevem. A questão particular no Brasil é que há gente que intencionalmente quer se fazer de superficial para ser profundo e consegue exatamente apenas o primeiro intuito. Em outras palavras: alguém uma vez disse de Oscar Wilde que quanto mais frívolo ele parecia ser, mais profundo ele era. Alguns escribinhas tupiniquins, por mais frívolos que parecem, mais frívolos conseguem ser de fato.